Sobre a esterilização do brincar

Dois metros de distância entre crianças.

Brinquedos unipessoais e intransmissíveis.

Isolamento dos grupos.

Expressões faciais ocultadas por máscaras e viseiras.

Ninguém duvida da necessidade de que a vida vá voltando ao normal, de que os pais possam regressar ao trabalho que tão necessário é, de que as creches voltem a ter fontes de rendimento, mas não podemos perder a noção do que está em risco. Crianças com dois metros de distância entre elas? Sem se poderem tocar, brincar umas com as outras, partilhar brinquedos, lutar, abraçar?

Estas tentativas de manutenção da sua saúde física terão, com absoluta certeza, um impacto tremendo na sua saúde mental. Teremos crianças ansiosas, deprimidas, a adoecer frequentemente – quando a mente não consegue elaborar o que sente, o corpo grita que não está bem.

As crianças precisam do toque para poderem integrar a sua experiência, e quanto mais novas são, mais isto é absolutamente imprescindível – qualquer pessoa, adulto ou criança, conseguirá atestar o valor de um abraço com carinho nas situações mais perturbadoras. Neste regresso das crianças às creches, ser-lhes-á dado colo de forma aberta e livre quando estiverem assustadas (o que se adivinha frequente)? Um “dói-dói” levará um beijinho para passar? E os educadores, sentir-se-ão capazes de desempenhar este papel, quando eles mesmos estarão legitimamente assustados? De máscara e viseira poderão disfarçar um pouco a sua própria dor, mas senti-la-ão certamente – e as crianças são peritas em ler subliminarmente quem as cuida. Quem beneficia afinal deste regresso abrupto ao “normal”?

Não há soluções perfeitas, é certo – não vamos fingir que há. Mas estas soluções apresentadas não parecem trazer mais do que a possibilidade do retorno à atividade económica, com verdadeiro prejuízo para o bem-estar e para o desenvolvimento saudável dos mais pequenos. Não podemos esterilizar o brincar, meio único de apreensão do mundo, auxiliar da estruturação do Eu, veículo para uma integração harmoniosa das exigentes tarefas de desenvolvimento da primeira infância. Urge pensar mais sobre o que está em causa, e apresentar soluções mais adequadas.

6 thoughts on “Sobre a esterilização do brincar

  1. Mum
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    Reflexão muito pertinente. Eu própria já tinha pensado nisto. Se as coisas forem mesmo assim, o meu filho de 5 anos não irá para o infantário em junho (fica comigo e com os 2 irmãos mais velhos em casa – porque posso). Muitos não terão esta possibilidade. O que será dessas crianças? Que consequências terá tudo isto no seu futuro?

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    • raizespsic
      raizespsic's avatar

      Sim, infelizmente muitos pais terão de se conformar com aquilo que for decidido, concordem ou não. Nesses casos, há que ajudar as famílias a garantirem a continuidade dos afetos e da promoção da saúde mental dos mais pequenos, nestes tempos tão difíceis!

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  2. Ana Patrícia
    Ana Patrícia's avatar

    Vai ser muito difícil as crianças não poderem tocar se brincarem juntos . Não ter colinho abraços da educadora das auxiliares. Muito menos com máscara ou viseira. Para mim não e bom crianças não vão entenderem. Como estarem fexadas em casa não poderem sair.

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    • raizespsic
      raizespsic's avatar

      Tem toda a razão! Esperemos que haja bom senso e que se permita uma livre expressão de afetos, dentro do que for razoável neste contexto de pandemia. Proteger o corpo não pode ser sinónimo de prejudicar a alma!

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