A ilusão no vazio: Movimentos políticos extremistas e o espelhamento das partes odiosas da mente

O mundo está a mudar. Até para o observador menos atento, será provavelmente evidente que se verifica uma expansão de movimentos políticos extremistas a nível global. Apesar de não ser algo novo nem absolutamente surpreendente, seria de esperar que tivéssemos aprendido com a história recente. Não parecendo ser possível fugir ao confronto com esta realidade, urge então pensar no seu significado e procurar áreas de intervenção e desintoxicação comunitárias e sociais.

A legitimação dos discursos de ódio a que temos assistido mais não parece ser do que a aceitação e encorajamento dos núcleos mais primários e destrutivos existentes no Homem. De repente, torna-se aceitável que a rejeição do outro e da sua diferença seja verbalizada de forma absolutamente violenta, parecendo poder coexistir com uma sociedade que se pretende cada vez mais justa e humana. Da discordância passa-se ao ataque, do desagrado passa-se ao ódio visceral – sem espaço “entre”, de aceitação das diferenças.

Por paradoxal que possa parecer, ao não haver espaço para a discussão desta toxicidade num contexto aberto e sanígeno, que consiga entrar em contacto com essa malignidade sem com isso se intoxicar e destruir, rejeita-se o pensamento do outro que é rejeitante, permitindo ou até involuntariamente encorajando a criação de grupos unidos pelo não pensamento, pela recusa do que é diferente e pela procura de reforço daquilo que os une – o seu ideal comum, aniquilador do outro que é distinto. Aplica-se indubitavelmente o conceito de entitatividade: os sujeitos são alvo de uma “desindividualização”, diluindo-se num grupo que lhes oferece um destino comum. Os membros destes grupos passam a pertencer a algo maior do que eles próprios, e aquilo que os une é exactamente aquilo que os afasta do mundo à sua volta.

Estes grupos extremistas são, não surpreendentemente, muito menos tolerantes do que grupos políticos moderados. Além disso, é comum que se ergam contra aqueles que consideram ser o “inimigo”: um bode expiatório, visto como responsável por tudo quanto de errado existe. Esta projeção serve não só o propósito de preservar a identidade e suposta idoneidade do grupo, ao colocar tudo o que é odioso nestes grupos, como também de rejeitar a existência dessas partes em si mesmos: no fundo, aquilo que atacamos no outro é, muito frequentemente, aquilo que não aceitamos em nós mesmos ou que nos remete para um lugar de fragilidade insuportável.

Desde o início da nossa vida que precisamos de um outro que seja capaz de conter e trabalhar os nossos conteúdos agressivos; afinal, um bebé que grita e chora está, acima de tudo, a procurar quem o leia, quem lhe encontre o motivo de tanto choro e, por fim, o tranquilize. Assim, não parece descabida a hipótese de que alguns sujeitos com falhas ao nível do seu desenvolvimento mais precoce sintam que não tiveram a possibilidade de ver transformados estes seus conteúdos, encontrando finalmente nestes líderes carismáticos e sedutores um “contentor” onde as suas partes menos aceitáveis pela sociedade (porque são, na realidade, partes não desenvolvidas ou integradas, sem reconhecimento da alteridade e individualidade) são, enfim, aceites. Mais: são até bem-vindas. Contudo, trata-se de um espelho ilusório, vazio e estéril, já que inibe a capacidade reflexiva e uma autonomia salutar, que permitiria ao sujeito pensar de forma diferente e evoluir enquanto sujeito individual, dotado que estaria de um mundo interno em contínua expansão. Já os líderes destes grupos, sedentos de admiração, provavelmente para compensar as suas próprias falhas desenvolvimentais, tendem a projetar uma imagem grandiosa e omnipotente, à qual os seguidores prestam a máxima atenção, sedentos que estão de uma figura quase-parental que lhes legitime as suas partes mais destrutivas. É uma “folie à plusieurs”, transtorno partilhado, com consequências absolutamente nefastas para todos.

A inversão desta tendência passará pela discussão sanígena, pela educação precoce e pelo apoio à cultura, dado o seu carácter absolutamente vital na construção de uma mais evoluída consciência social. Só assim poderemos caminhar em direção a uma sociedade aberta ao diálogo, à reflexão e intervenção crítica, respeitadora da saudável pluralidade que pode e deve existir. De que estamos à espera?

* Adaptado de conferência proferida com Isabel Mesquita a 16 de maio de 2021 no (re) Vision 2021: International Forum for Psychoanalytic Education (EUA)

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