Do “cada um sabe de si” ao “estou aqui para ti”

Muito se tem escrito desde que Pedro Lima, ator bem conhecido do grande público, se suicidou. Além da não surpreendente cobertura jornalística, em que há uma excessiva exploração deste tema tão difícil e multifactorial, geralmente de forma leviana e profundamente desrespeitosa para com família e amigos, encontram-se um sem-fim de publicações no Facebook e no Instagram, onde comentários aparentemente pouco problemáticos saltam à vista.

“Ele lá sabe.”

“Antes ele que eu.”

“Não somos ninguém para julgar, lá teve os seus motivos.”

“Cada um sabe de si.”

Ora, Pedro Lima estava doente. Não interessa explorar a sua situação específica, por respeito a todos os que o amam. Mas, se há algo se pode retirar de toda a gravidade da situação, é que a depressão não é só tristeza, não é só fragilidade – é, na realidade, muitas vezes acompanhada de sorrisos. A depressão é um monstro que se infiltra por debaixo da pele, que grita mais alto que as palavras de afeto e os abraços dos que são próximos, que tolda a visão e traz desespero. O suicídio nunca é uma decisão descomplicada, em que “cada um sabe de si”, como quem está indeciso entre escolher carne ou peixe para o jantar. Estamos a falar de continuar a viver ou preferir morrer, tal não é a escuridão avassaladora que povoa o mundo interno de quem se encontra nesta situação.

Quando se diz “ele lá sabe, não temos nada a ver com isso”, como se leu em alguns comentários aleatórios, foi impossível não pensar na forma como talvez, no nosso quotidiano, nos coloquemos à margem dos problemas dos outros. No caso do ator, parece que já haveria acompanhamento médico e suficiente suporte da família e amigos – mesmo assim, a tragédia não foi evitável. Em contexto clínico, surgem frequentemente pessoas que não se sentem apoiadas e validadas no seu sofrimento pelos que as rodeiam. Como se, de uma forma geral, familiares e amigos não pudessem (quisessem?) ter um papel nesta equação, mantendo-se apenas como apenas espetadores da sua vida.

Seremos realmente só espetadores dos outros que nos são próximos, do seu sofrimento, sem intervir? Pensaremos que eles “lá saberão o que fazem” – e, com sorte, não será assim tão mau? Felizmente, a maioria das pessoas não saberá o que é estar tão angustiado que a morte parece a melhor solução – mas, na realidade, a cada 40 segundos morre uma pessoa que sente já não haver nada a que se possa agarrar. São oitocentas mil pessoas que se suicidam no mundo todos os anos. Oitocentas mil pessoas que sentem tanta dor, tanta angústia, tanto desespero, que preferem não sentir nada.

Nem todas as pessoas que estão deprimidas farão tentativas de suicídio, é certo. Ainda assim, nos primeiros três meses de 2020  – o que mal inclui o início da pandemia que desestabilizou quase toda a população – foram vendidas em Portugal mais de cinco milhões de embalagens de antidepressivos e ansiolíticos. Numa população de dez milhões de habitantes, estes números tornam-se absolutamente arrepiantes. Quando saírem os dados relativos ao segundo trimestre de 2020, estes serão certamente maiores – em plena pandemia, a saúde mental dos portugueses foi profundamente afetada.

O que é que podemos fazer? Observar, e não só olhar. Escutar, e não só ouvir. Nunca, mas nunca, desvalorizar o sentimento do outro. É essencial encaminhar a situação para quem trabalha na área da saúde mental, porque “não penses nisso, isso passa” tem tanto efeito na depressão como no cancro. Aqui, numa discussão sobre a doença mental, a mesma gravidade tem de ser empregue, a mesma atenção, o mesmo cuidado. Este tema é sério, é muito sério, e merece a atenção de todos nós.

A doença mental é ainda, em pleno século XXI, olhada com desconfiança, com descrédito, como se de algo absurdo se tratasse. Não se questiona a dor de um problema físico, mas o problema emocional continua a ser visto como decorrente da falta de vontade ou da fraqueza de quem o sente. Isso tem de parar. Sim, existe dor. Sim, existe sofrimento. Mas também é verdade que sim, existem soluções. Nem sempre se consegue encontrá-las quando se está mergulhado neste desamparo profundo, e é exatamente aí que é mais necessário que alguém dê a mão. Existem cada vez mais respostas em saúde mental, e, qual raio de sol num período negro como o atual, muitas delas são grátis. Linhas telefónicas, grupos de apoio psicológico online, contexto psicoterapêutico tradicional… O importante é que se saiba que existem pessoas disponíveis para ouvir, sem julgar, e que tentarão ajudar a encontrar respostas para que, mais uma vez, a vida volte a ser a melhor escolha.

Que estejamos todos atentos. Que saibamos passar do “cada um sabe de si” ao “estou aqui para ti”.

Contactos úteis:

Linha telefónica SOS Voz Amiga – linha de prevenção do suicídio, grátis, a funcionar das 16h às 24h, 7 dias por semana – 213 544 545 – 912 802 669 – 963 524 660

Linha telefónica Lisboa Liga-te – linha grátis a funcionar 24 horas por dia, 7 dias por semana – 800 916 800

Grupos de Apoio Psicológico Online da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica – sessões de apoio psicológico online em grupos de 3 a 10 pessoas, grátis, sob inscrição – https://www.apppp.pt/eventos/grupos-de-apoio-psicologico-online-gapo_40

Acalmaonline – consultas de psicologia online, grátis, sob marcação – https://acalma.online/

Linha SOS Criança – linha telefónica grátis, 24 horas por dia, 7 dias por semana – 116 111 – 217 931 617

Linha Nacional de Emergência Social – linha telefónica grátis, 24 horas por dia, 7 dias por semana – 144

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