Manifesto contra os envelopes no Natal

No Natal só recebo dinheiro”, diz-me ela. Pergunto se isso quer dizer que não desembrulha uma única prenda. Pensa um pouco e, com um encolher de ombros, diz que “assim pelo menos compro o que quero e não recebo só coisas de que não gosto. Nunca acertaram.”

E assim, numa pequena troca de frases com uma pré-adolescente, se torna visível um lado menos festivo do Natal. Entre se achar que é o Pai Natal quem dá as prendas, mas apenas a meninos que se portam bem, e receber dinheiro para o que se quiser comprar, há uma diferença abismal. Contudo, não são assim tantos os anos que separam estas duas realidades – isto começa a acontecer logo aos 10 anos de idade. Da crença ingénua e infantil, em que um velhote de barbas brancas no Pólo Norte constrói os nossos brinquedos com amor, com a ajuda de pequenos duendes, passamos para um olhar frio e por vezes cínico de se comprar autonomamente o que se quer, com o dinheiro que vem dentro de um envelope. Isto não acontecerá com a maioria, certamente, mas há crianças que são alvo de um certo desinvestimento emocional, “compensadas” com um envelope (se possível) recheado. Escolhe tu o que queres, dirão alguns adultos. Ninguém sabe aquilo de que gosto e não estiveram para se chatear, dirão algumas crianças.

Não se pretende ser radical, atenção. Qualquer pessoa gosta de receber dinheiro para poder comprar aquilo que lhe apetece. Mas sabe sempre melhor quando alguém nos dá algo que adoramos. Sentir que nos conhecem, que pensaram em nós e que despenderam não só de dinheiro mas, acima de tudo, de tempo, faz com que sejamos recordados dos laços que nos unem. Do bom que é estar vivo dentro do pensamento do outro.

Com crianças, escolher uma prenda pode não ser fácil, principalmente quando a vida não permite grandes luxos e estas têm preferência (talvez por lhes ser martelada pela publicidade que nos invade nesta época) por brinquedos mais caros (leiam-se também telemóveis, consolas…). Quando se pretende aceder ao seu desejo, e como alternativa a cada pessoa dar um envelope e contribuir para um “bolo” financeiro que só mais tarde será uma prenda, não seria possível juntar previamente familiares ou amigos para comprar a dita prenda, oferecendo-a como um esforço económico conjunto de um grupo de pessoas que querem presentear a criança com algo do seu agrado? Todos os caminhos vão dar a Roma, é certo, que neste caso é uma criança com a prenda da sua escolha. Mas, ao nos retermos no afeto presente no gesto de aproximação ao desejo de uma criança, concretizando no aqui e no agora o que por ela foi sonhado, talvez nos consigamos recordar de como era bom na nossa própria infância quando abanávamos a embalagem, rasgávamos o papel de embrulho e gritávamos com entusiasmo “Como é que adivinharam?!”. Sentirmo-nos pensados por alguém, demorados na sua mente e alvo do seu afeto e investimento emocional, é, na realidade, a melhor prenda que podemos receber.

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